9.2.11

Revisitando: publicado em 15 de Setembro de 2005....

RAZÕES DA MEDIOCRIDADE

Citando Fayga Ostrower:

«A natureza criativa do homem nasce do contexto cultural onde se encontra inserido. Todo o indivíduo cresce e desenvolve-se numa determinada realidade social, cujas necessidades e valorizações culturais se moldam aos próprios valores de vida. No indivíduo confrontam‑se, por assim dizer, dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade, que representa as potencialidades de um ser único, e a sua criação, que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de determinada cultura embebida»

Citando Miguel Torga:

«Moeu‑me a paciência! Trinta anos, bem medidos, de tenacidade! Cheguei quase a desanimar. Vinha, olhava, tornava a olhar, e nada. Alcandorado no seu trono de penedos e nuvens, com o Douro ajoelhado aos pés e o céu a servir‑lhe de resplendor, o Santo furtava‑se ao retrato poético, de qualquer ângulo que eu apontasse a objectiva. Hoje, porém, de repente, entre duas perdizes, não sei por que carga de água, abriu o rosto e foi ele mesmo que me propôs o instantâneo. / ‑ Mostre lá então as habilidades... ‑ pareceu‑me ouvi‑lo dizer. / Nem escolhi enquadramento. Antes que se arrependesse, travei a espingarda e disparei a imaginação ao calhar, do sítio onde estava. / Na arte fotográfica propriamente dita, à sístole diafragmática segue‑se a revelação da película na câmara escura, rematada por alguns retoques amáveis às imperfeições da obra. No meu caso, não houve película, nem câmara escura, nem retoque nenhum. A imagem saiu como está do acto retentivo. Parecida com o original? Muito longe disso. Os poetas não trasladam feições».

Citando Fayga Ostrower:

«Todo o processo de elaboração e de desenvolvimento abrange um processo dinâmico de transformação, em que a matéria que orienta a acção criativa é transformada pela mesma acção. [...] Transformando‑se, a matéria não é destituída do seu carácter. Pelo contrário, é diferenciada e, ao mesmo tempo, é definida como um modo de ser. Transformando‑se e adquirindo uma nova forma, a matéria adquire unicidade e é reafirmada na sua essência. Ela torna-se matéria configurada, matéria‑forma, e nessa síntese entre o geral e o único é impregnada de significados»

António Ferreira, a Diogo Bernardes, aconselha o amigo:

Não mude ou tire ou ponha, sem primeiro
Vir aos ouvidos do prudente, experto
Amigo, não invejoso ou lisonjeiro.

[...] Per'isto, é bom remédio às vezes ler‑se
A dous ou três amigos; o bom pejo
Honesto ajuda então a melhor ver‑se.

Vitorino Nemésio, no poema «O Bicho Harmonioso» escreve:

Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
[...]
Tudo isto seria aquele poeta que não sou,

Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.


A capacidade que cada um detêm para se afirmar, internamente, com maior ou menor grau de exigência nas suas acções, atribuindo-se satisfação ou pelo contrário criticar-se duramente e nunca ficando satisfeito com a obra realizada advém, com naturalidade, da dualidade surgida da aprendizagem feita da vida vivida com as impressões decalcadas do meio social e cultural onde cresceu e se moldou.

Não significa, forçosamente, que a condicionante social e cultural não possa ver-se melhorada e acrescida quando o indivíduo possui forte espírito crítico e enorme inteligência. A cultura espelhada é o reflexo da imagem das alegrias e frustrações apreendidas e da capacidade interpretativa das mesmas. Se o homem nasce e cresce rodeado de sentimentos pequenos e mesquinhos dificilmente o deixará de ser. O reflexo que projecta é, em grande parte, fruto dos reflexos colhidos de todos os outros com quem privou, que escutou e com os quais concordou ou discordou.

A própria essência do acto de concordar ou discordar é relativa e fortemente condicionada pelo espírito crítico, pela inteligência, capacidade de análise e cultura assimilada, tudo vertentes de um mesmo sólido: a aprendizagem efectuada e constantemente aumentada e reciclada. Estando a aprendizagem inteiramente dependente da transmissão oral e escrita, falhando em parte ou no todo aquela resta a leitura compulsiva e multifacetada para suprir as lacunas do conhecimento. Ficam contudo de fora as acções comportamentais associadas ao meio social onde cresceu e os valores retidos, estes normalmente incutidos pelo processo de transferência familiar.

Não é assim indiferente para a transformação da matéria todo o conjunto de significados apreendidos pelo indivíduo, influindo directamente na maneira de ser e no carácter deste. O maior ou menor grau de exigência que fixamos para nós próprios reflecte-se, directamente, na menor ou maior satisfação que retiramos dos nossos actos e na nossa própria realização. É a diferença entre acertar a bitola por cima ou preferir comparar por baixo.

É então claro que quanto maior o grau de compreensão dos fenómenos, maior o grau de exigência nos comportamentos e acções. Tendencialmente procuraremos os melhores e, ainda assim, viveremos confrontados com a realidade de que o que fazemos, todo o processo criativo fundido no geral e no particular, poderia ser ainda melhor e essa constatação e insatisfação simultânea leva a uma transmissão social e cultural cuidada e atenta, na esperança de que quem nos escuta e nos precede consiga fazer melhor.

Infelizmente para o Portugal político o conhecimento, a exigência individual e a consciência do colectivo foi vencido pela mediocridade no geral. Na mediocridade não há lugar para vozes discordantes só havendo mesmo lugar para os medíocres e os muito medíocres, porque a comparação se faz por baixo. O padrão não comporta significados nem carácter. A essência da coisa reside nos tiques pequeno-burgueses, adicionados a uma forte dose de impreparação cultural, ausência de postura e desconhecimento das regras de comportamento social.

É por culpa do homem político nacional que o País está como está: sem identidade, sem valores, sem história, sem cultura, sem educação. Em suma, sem sentido.



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