28.2.05

Uma 1ª página de sensacionalismo surreal para um jornal que se diz sério!
A ausencia de chuva, o frio prolongado, um Inverno atípico parecem ter contribuído, em conjunto ou cada um por si, para uma metamorfose complicada de explicar nos jornais portugueses, quer diários - o Público - quer semanários - Expresso. A metamorfose consiste numa falta reiterada de consideração pelo leitor, pela utilização da mentirola - o termo já é suficientemente depreciativo para ser ainda adjectivado - pela exploração de textos pouco conseguidos e nada credíveis de análise política e, por último, uma tendência para o "injornalismo" - o "palavrão" é meu - que cola os jornais "ditos sérios" aos "tabloides" de circulação de massa e de qualidade inexistente, copiando-lhes os tiques, as formas, os conteúdos.
Este último reparo vem a propósito do Expresso desta semana e da capa do mesmo.
Na capa do Expresso vem a fotografia de uma muito presumível assassina - a ausência do corpo de uma criança não invalida o crime, bem como dizer que de uma assassina se trata só aos Tribunais compete - supostamente espancada, encimada com um título deveras motivador: Tortura!
Assim, mesmo, sem qualquer dúvida.
Estamos perante um acto de tortura! Uma bondosa senhora, ainda por cima "mãe", saída de um qualquer conto de Dickens, de tão candida se nos oferece, foi brutalmente espancada, supostamente pela polícia, porque não sabe do paradeiro da sua adorada criança, menina que se encontra perdida em parte incerta e que a "pobre mãe", estremosa, chora convulsivamente noite e dia.
Assim mesmo, sem qualquer margem de especulação. A "senhora" foi espancada.
Curiosamente, não me recordo de uma única 1ª página do Expresso com a descrição do possível e horrendo desfecho desta criança, acompanhada de uma fotografia que nos mostrasse a sua beleza e ingenuidade sincera, de criança, os seus olhos brilhando perante a imagem da mãe e, assim, chocasse os nossos corações empedernidos de consumistas citadinos e nos alertasse para a imensa violencia e a sempre presente e associada miséria, que continua a fazer parte, infelizmente, de um certo Portugal excluído, ostracizado.
Mas a "senhora" sim, tem direito a 1ª página. Porquê? Não vos sei responder. Até porque a suposta explicação oficial já me parece perfeitamente satisfatória: a "senhora" caíu nas escadas, muito provávelmente pelo estado comatoso em que se encontra a sua alma, provocando-lhe desequilíbrios graves, dificuldades na percepção cognitiva. Por mim penso que só ter caído uma vez foi pura sorte. Poderia ter caído mais três ou quatro, ou mesmo mais, que não estranharia e até seria compreensível, atendendo ao seu estado. Poderia até ter morrido entretanto, de desgosto claro, que consideraria perfeitamente normal.
Pelos vistos o Expresso e a sua redacção não pensam assim. Dão cobertura a um "facies" que gostaríamos todos que estivesse escondido, mais que não seja para que ninguém se convença que ver-lhe ser imputados crimes tão hediondos poderá resultar numa publicidade imensa e ganhar o direito aos tais "quinze minutos de fama".
Efeitos do Inverno. Ou quem sabe, muito mais grave por não ser passageiro: serão efeitos da falta de ética?; de civismo, consideração, respeito pela vida humana?; da muita ganância, da perca da consciência e da moral ou da incapacidade de distinguir o bem do mal?; No fundo, fruto talvez de almas atormentadas e doentes? Serão porventura capazes de desculpar semelhantes actos, de os acolher, de defender os princípios dos direitos humanos em tais circunstâncias? E que dizer da vontade imensa de atacar agentes da lei que lidam, diáriamente, com casos e crimes que nem nos nossos piores pesadelos somos capazes de imaginar?
E porquê tudo isto? Porque uma criatura caíu das escadas? Ainda por cima só por uma única vez?
Vá-se lá saber 0 porquê!
Mas uma coisa eu sei: enquanto me recordar, o Expresso não irá fazer parte das minhas leituras!

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