A escrita é, simultâneamente, um desafio intelectual entusiasmante e uma ferramenta de perfuração do pensamento. A mim, particularmente, agrada-me escrever. Contudo, últimamente, tenho-o feito menos do que gostaria. Razão: temo que a escrita fique carregada de azedumes, de alguma raiva contida, tantos os dislates que presencio e tal o caminho que o País, económico-socialmente, vem percorrendo. Gosto de escrever, respeito a sua idiossincrasia, agrada-me a contundencia construtiva. Detesto criticar sem elucidar, sem apontar, directa ou enviezadamente, caminhos passíveis de conduzir a soluções.
Tudo o resto não é, exactamente, escrever mas muito mais relatar, descrever.
Mas o que fazer neste Portugal tão pequenino, mais pequeno que aquele que remontando a 1940 se assemelha a um augúrio azedo dos deuses, senão ir descrevendo, penosamente, a bizarria da política nacional, esperançosos não no verbo mas na espada. Vejamos então algumas singularidades:
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1. Câmara Municipal de Lisboa sob investigação e logo em matéria tão delicada como o urbanismo.
Em simultâneo Lisboa está esventrada, imunda, coberta de publicidade asfixiante, pejada de miséria que, na sua larga maioria, nem fala português e, agora, de sinais reguladores de velocidade horríveis e de agentes da autoridade e outros, pseudo agentes semelhantes a hortaliças, que passam multas a torto e direito, mas não nos defendem do importúnio e da insegurança gerada pela galdeiragem mal-cheirosa do Leste (leia-se romenos). Há alguma coisa que se possa acrescentar à descrição ? Nada a não ser dizer, aos responsáveis autárquicos, demitam-se! E vale a pena ? É claro que não. A nossa palavra e representação cívica e política só têm voz e, especialmente, valôr, três semanas de quatro em quatro anos.
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2. A criação de um imposto sobre ofertas pecuniárias de valôr igual ou superior a 500 euros. A legislação já existia, ficámos a saber, só não tinha norma. Agora tem. Se fôr entre familiares directos a oferta só (?!!?) paga imposto de selo. Entre todos os outros pagará, cumulativamente, IRS. Em qualquer dos casos, todos os valores terão de ser declarados.
Esta lei (custa-me chamar-lhe lei, porque à lei associo as noções de justiça e equidade) é abstrusa conquanto: implica mostrar, por declaração, a quantidade de ajuda e apoio monetário recebida, sem que o Estado se esforce, modificando comportamentos, para que essa ajuda deixe de ser necessária, ou sendo-o, seja o próprio Estado a fornecê-la. A este comportamento chamo de voyeurismo baixo. Acresce que a isenção de IRS nas situações de ascendentes e descendentes directos, esquece, para todas as outras situações, um princípio fundamental de qualquer estado de direito democrático, - a Solidariedade. Com esta lei a solidariedade passa a ser taxada, ou melhor, somos instigados a deixar de ser solidários e a tornar-mo-nos nuns egoístas (que já somos) desprovidos de sentimentos. Algo mais a acrescentar? Nada, está descrito. Talvez sugerir, entre dentes: esta não é para cumprir e quem o fizer é parvo!
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3. Assistir na noite de ontem ao debate sobre a Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário (vulgo TLEBS) e constatar que a referida terminologia irá ser revista por dois especialistas nomedados pelo Ministério da Educação (exacto dois e não uma comissão mais ampla, como se imporia), sendo que pelo menos um deles acumula as seguintes características:
i) é um defensor acérrimo da TLEBS, constatável através de alguns artigos de sua autoria dados à estampa na imprensa nacional; ii) a sua consorte é co-responsável pela feitura da mencionada TLEBS; iii) é revisor científico da editora responsável pela publicação da nova gramática decorrente da aplicação da TLEBS; iv) colocado perante a quase certeza da sua mais que questionável imparcialidade analítica e da incompreensão da sua nomeação, atendendo ao histórico mencionado e às inevitáveis relações que ferem, mortalmente, qualquer código deontológico e de comportamento exigíveis a um qualquer cidadão sério e honrado, responde, desaforadamente, que a pergunta deverá ser colocada ao Ministério da Educação, entidade que o nomeou.
Também aqui haverá algo a acrescentar ? Nada, só descrever, como foi feito. Talvez um pequeno conselho; somos capazes de um dia destes nos cansarmos, todos, de sermos tomados por parvos, tantos anos seguidos. Ou talvez não e então, para os que ainda têm uma pinga de vergonha e decência na cara, restar-lhes-à emigrar e aconselhar o mesmo a todos os outros que lhes são chegados.
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Pessoalmente preferia a primeira possibilidade, essa mesma, a da porrada, mas se não fôr possível, paciência.
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