27.12.05

Um homem sentado no chão...

Um homem sentado no chão pede por uma esmola, por uma réstea de sobrevivência. O homem já nãovive, tão pouco sobrevive. Este homem contenta-se com os restos da sobrevivência, do respirar possível, do caminhar possível, do falar quase ininteligível. O homem já não quer, sequer, que se condoam da sua situação que é nenhuma. Este homem está verdadeiramente abaixo de cão. O que procura o homem então? Agarrar-se ao ar, ao dia, a cada dia que passa, literalmente. O homem só quer respirar, caminhar, comer. Porque a vida para este homem não existe. Ele não tem vida, nem própria nem alheia. E compreende-se. Quem por ele passa percebe, distintamente, que a vida já não mora ali. Nem no plano da morte a vida existe. O homem já está morto na moral, na dignidade, no pensamento, nas expectativas. Dentro deste homem nem uma réstea de esperança existe a não ser a de viver mais um dia. A roupa não existe, só farrapos, mostrando em toda a sua extensão o forro de que é feita - jornais rasgados, dobrados, pontas desfeitas e muito, muito sujas. Este é o verdadeiro agasalho do homem; os jornais com os quais procura reter o pouco calor que o seu débil corpo conserva. E estão 6 celsius negativos. O home pede a moeda, que de quando em vez lhe cai na mão ou perto. Num homem destes não se toca. Nem se olha verdadeiramente. Passa-se um olhar muito de relance e percebe-se tal miséria que a vergonha contida da sociedade se inibe de se mostrar constrangida perante tanta miséria, pois que constrangimento tem este homem de sobra, não precisa que lho aumentem.
Parei a uma distância suficiente para não ser notado. E vi aquele homem, para lá do fim da linha, numa curva da vida inalcançável. Mesmo que se queira, isoladamente nenhum de nós tem condições de valer àquele homem. Ele está para lá da nossa capacidade de compreensão. Talvez só num templo, despojados de todas as vestes e metais, nús e todos iguais, consigamos olhar aquele homem e pensar que possa ser parte de um qualquer objectivo oudestino. Ali na rua, sentado, não! Aquele homem não tem objectivo ou saída possível e o destino está traçado: o homem já está morto!
Onde pára então a sociedade, quando a vida de um homem se degrada inexorávelmente, muito para lá do limite que julgamos possível? Onde pára a economia, o estado social, para que o plano inclinado de uma vida seja barrado e o homem recuperado, antes que se espete no seu final com grande estrondo e se desfaça em mil pedaços feitos de todos os seus sonhos, das suas ambições, da família, do desespero, da vontade, da descrença, da dignidade e da vida?
Compete ao estado zelar pelo bem estar de todos. O estado somos todos e queremos que todos sejam apoiados. A vida é fértil em surpresas, sendo os seus momentos desagradáveis em maior número que os restantes. Queremos ter a certeza que a vida não nos caça numa qualquer viela e nos atira para o caixote dos despojos, para o leque crescente e já interminável dos que foram caçados na teia do destino, escrito pelas mãos de todos que nos abstemos de participar e fomentar a igualdade de direitos e deveres, vivendo de egoísmos, de espaventos e cultivando o sofisma.
O estado tem de ser interventivo. Para tanto precisa de se dotar de meios próprios. O estado precisa de investir para gerar riqueza, para lá daquela que obtém através da coerção fiscal. O estado tem de se comportar como um qualquer outro accionista; acreditar na gestão privada e pedir dividendos no final dos exercícios. O estado tem de aplicar os seus dinheiros, de escolher os seus investimentos de forma criteriosa e cautelosa porque o estado somos todos nós e o capital investido é todo nosso. Depois o estado tem de aplicar uma fatia dos resultados em novos investimentos e a fatia restante tem de ser forçosamente canalisada para o estado-providência.
Como é possível sabermos todos que há reformados que vivem com perto de 20 contos por mês? Imaginamo-nos, acaso, a viver com tal quantia mensal? Não foram estes reformados outrora homens e mulheres válidos para a sociedade? Não contribuíram com o seu esforço e trabalho para o bem comum? Não são agora, eles próprios, vítimas da má condução das políticas passadas e presentes, praticadas por outros homens? E todos os outros, que mendigam nas ruas? Não serão igualmente merecedores da atenção do estado, ou seja, de todos nós? E ainda aqueles a quem falta a assistência na doença? E os outros a quem é vedado o acesso à cultura, por falta de meios e condições?
O estado não pode gastar para luzir pela frente e, em simultâneo, andar passajado ou roto na retaguarda.
Porque o estado somos todos nós e todos temos a obrigação de apresentar uma só cara.

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