5.6.05

O FEDERALISMO EUROPEU - A SOCIEDADE DOS HOMENS SEM MEMÓRIA

A crescente tentação de abraçar estrepitosamente o federalismo, por alguns, e a resposta clara de muitos outros na recusa da sua aceitação, advém do desejo daqueles de conduzir ao mais que provável desaparecimento do Estado-Nação como o conhecemos e, com ele, à morte anunciada da política, constituindo elites todas poderosas e decisoras ao arrepio do respeito pelos valores, práticas e necessidades próprias a cada povo, e pela consciencia de todos os outros, que dentro do respeito da soberania e do exercício da política como garantes da identificação, da transmissão das suas preocupações e na tradição de enquadramento do debate político, percebem a necessidade de existência de um corpo político que corresponda à sua identificação geográfica, à solidariedade sentida, aos usos e costumes cimentados e sedimentados. É este corpo político que permite aos cidadãos de um país expressarem, na obediência às leis, o seu "patriotismo institucional". No mundo complexo de relações que se tem criado na União Europeia, a esperança residente em Bruxelas baseia-se na certeza da cada vez mais difícil e penosa missão da política em ser instrumento organizador da vida dos homens em sociedade ao nível nacional, pela perca dos poderes legislativo e normativo, tornando-se num exercício secundário e inadaptado aos problemas colocados pelo federalismo.
A crise de políticos e das ideias políticas advém desta dificuldade adaptativa, caminhando para o crónico.
Perdendo-se a organização piramidal do poder, perde-se a componente hierarquizante da lei.
As grandes decisões já não originam as pequenas decisões.
A crise da concepção espacial do poder repercute-se, assim, na formação das decisões, tornando-se os Estados nacionais letárgicos e a sua classe política acomodada, ausente na decisão e carente de orientação externa. O debate político, entendido como debate de princípios e ideias, debate ideológico sobre a organização da sociedade esfumar-se-ia, desagregando-se, reflexo da desagregação do processo de decisão e da sua profissionalização.
Numa democracia avançada tornar-se-ia cada vez mais difícil à classe dirigente conseguir uma visão geral das questões, sendo mais visíveis os interesses particulares, das grandes empresas, dos estados mais ricos, dos "lobbies" poderosos que não funcionando gratuitamente, tenderiam a beneficiar aqueles em detrimento dos mais pobres.
O engano existe na ideia generalizada de que o interesse geral nasce, naturalmente, da confrontação honesta e honrada dos interesses particulares.
A política existe como resultante de um contrato social que precede e ultrapassa todos os interesses particulares.
Se se abandonar este princípio, reduzindo a política a uma ferramenta de um "mercado" dominado por um centro decisor europeu poderoso, o espaço de que dispõem os políticos ficará irremediávelmente ameaçado, tendendo a desaparecer, pela simples razão de não ser possível ao "mercado" fixar valores para o interesse nacional, delimitando a equidade e solidariedade exigíveis.
Se o colectivo nacional não é um dogma mas sim uma opção, ninguém disporá dos meios capazes para fundamentar essa opção com critérios idênticos aos que guiam a sua acção na gestão dos próprios interesses. Não há dogma económico ou político que se possa substituir à evidência geográfica e histórica de uma nação. As democracias liberais sempre distinguiram e fizeram questão na distinção, entre esfera pública e privada, conciliando a lógica unidimensional dos interesses com a tradição humanista de que toda a pessoa é um sujeito.
O cidadão moderno era um ser bidimensional, preservando uma certa unidade interior em cada uma das facetas da sua vida. Abandonando o postulado da proeminência da política, a separação entre público e privado banaliza-se, pulverizando a ideia de próprio sujeito, pilar fundamental da democracia liberal. O mesmo homem pode pertencer, em simultâneo, a um partido político, a uma administração de empresa, a uma associação representativa dos cidadãos, mas perante a impossibilidade de se dividir infinitamente, não escapará a um conflito de interesses. Ao perder a dimensão temporal, fechando-se em situações em vez de se organizar à volta de princípios, o debate político esvazia-se de substância. O passo seguinte é a "mediatização" em crescendo a que se assiste hoje em dia, para gáudio dos "media", em que o efémero se substitui à consciência de um destino comúm, vivido em continuidade. É a sociedade dos homens sem memória.
É esta memória colectiva dos povos que Bruxelas pretende substituir por uma outra, inexistente, a memória de uma Europa unida política e geográficamente. Como essa memória colectiva nunca existíu, a tentação de artificialmente a criar conduzíu as elites europeias para uma Europa piramidal, de base invertida, pretendendo avivar paixões através de documentos e tratados, esquecendo que é através das paixões que nascem os pólos aglutinadores, as bases do funcionamento sólido das sociedades no respeito dos usos, costumes, história e tradições, todas comuns e identificáveis com um determinado espaço geográfico onde a população se revê.
Porque estas razões não foram atendidas aquando da "engenharia de construção" da nova Europa, nos "gabinetes projectistas" das instituições europeias, que previa um conjunto de Estados pescado por arrasto e preso nas redes de malha estreita feita de interesses político-económicos, os "banhos" de afluência às urnas em França e nos Países Baixos e a clara rejeição à ausência de memória e à instrumentalização dos povos foi tão clara e inequívocamente demonstrada.

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