18.7.05

CONTRASTES...

Regorgito de alegria. O dia é bom, a noite é óptima. O dia é curto, a noite comprida. Gozo o folguedo da vida e, mais importante, partilho-a. E como adoro essa partilha. Caminho ao final do dia, olho os ponteiros - são 9.30 da noite. Deixo-me deslizar, mais do que caminhar, leve e seguro, certo de uma boa noite que se aproxima com amigos, uns petiscos, umas "gasosas" e muita conversa e galhofa. Olho em redor, ainda dia e quente o ar, já não o bastante para criar aquela sensação de desconforto de roupa semi-pegada ao corpo, aliás áquela hora já trocara de roupa duas vezes - hora de almoço e quando saí para jantar.
Caminho então solto de pensamentos quando passo ao lado de um caixote - quem deixaria um caixote ali, no vão de uma porta - e sigo. Impelido pela diferença percepcionada, de soslaio olho de novo aquele caixote. E "aquele caixote" é um homem todo coberto, descalço, com uns ténis espatifados meticulosamente arrumados a um canto. E dormia. Às 9.30 já dormia ou fingia, mas estava ataviado há mais tempo, pelo que aposto estaria assim desde as 8.30 p.m.. 8.30? Com um dia tão bonito? ...
O que são os dias? E ainda por cima adjectivados de bonitos? Os dias podem ser curtos ou compridos, dependendo das circunstancias. Para aquele homem o dia era igual ao outro dia e ao outro. Não existem dias para ele mas sim um simples dia. Sempre igual e, acima de tudo, tão comprido. Tão comprido e deprimente.
A noite sim é o aconchego e chega sempre tarde e vai-se sempre cedo. À noite aquele homem é um homem embrulhado num caixote, de identidade indefenida, esquecido dos seus próprios problemas e escondido de todos os outros homens. Na ausencia de identidade aquele homem encontra-se finalmente a sós consigo mesmo na ausencia do pensamento. Aquele "homem do caixote" quer tudo menos pensar. Dá graças a Deus por não ter caixa de correio - assim ninguém o pode maçar. Dá graças a Deus por não ter memória, de noite, que lhe permite dormir e descansar. Esconjura o demónio quando este lhe trás o passado, na forma de más recordações, de arrependimentos, de gestos impensados e atitudes egoístas que o afastaram de tudo e de todos. A vida deste homem é feita algures no limbo do errante passar de tempo onde se não quer o passado e não existe espaço para o futuro. Paradoxalmente, o "homem do caixote" foge todos os dias do presente que abomina mas com o qual cohabita na luta pela existência. Ele e o presente são inimigos fidagais e, em simultâneo, aliados essenciais. O "homem do caixote" gostaria de escapar a este presente, esperançado num futuro, preferindo um futuro incerto a um presente penoso na ausencia de novidade, na certeza da sempre presente igualdade. O presente nega-lhe a pretensão, inibindo o futuro de se apresentar. Para aquele homem o presente esmaga-lhe diáriamente o presumível futuro. Mas o presente, obrigando-o a uma ginástica dos diabos, vai-lhe garantindo a presença diária das necessidades básicas que o mantêm vivo, em dificuldades mas vivo. Traz-lhe em simultâneo a desconfiança e, mais ainda, a indiferença de todos os demais com quem se vai cruzando, aquilo que lhe custa mais, a sua inexistência na existência diária de um presente só seu e não mais partilhado. Tantos sonhos desfeitos, tantos desvarios, quantos azares e esquinas da vida que atraiçoaram o "homem do caixote".
Com a noite tudo se esquece e, com sorte, também na maioria dos dias. Mas aqueles dias são tão compridos e as noites tão curtas.
Toco à campaínha, sou recebido ao som de Sinatra - "Flying To The Moon" - um copo com vodka tónico na mão e um monte de amigos à mão para conversar. A noite promete e vai ser longa.
(situação fictícia mas possível)

1 comentário:

Manolo Heredia disse...

Bons Velhos Tempos, anos 80, da discoteca "A Lontra", depois de uns copos na Trindade !!!